domingo, 15 de agosto de 2010

Fordismo

Fordismo
O fordismo constitui o sistema de produção associado à figura do seu inspirador, o fabricante de automóveis norte-americano Henri Ford, que, na década de 1920, pôs em prática os princípios de racionalização do trabalho emanados do taylorismo e lhes associou o trabalho em sequência contínua ou trabalho em cadeia. O fordismo pode ser descrito por um sistema de racionalização do trabalho que assenta no princípio básico do ritmo máximo de produção da empresa. O móvel para a constituição de uma organização empresarial assente na distribuição do trabalho em cadeia começou por ser, fundamentalmente, de natureza financeira: os vultuosos investimentos na aquisição de matérias-primas e os custos de mão-de-obra, para um mercado em franco crescimento, conduziram à concretização da ideia de produção em movimento, sem paragens. A velocidade de realização dos homens passa a ser condicionada pela velocidade de andamento das fases do processo impostas pelas máquinas, o que veio introduzir um novo problema em termos de interacção Homem/máquina - todos os operários que não conseguissem acompanhar o ritmo a que avançava cada tarefa mecanizada tinham de ser substituídos no processo produtivo. O fordismo teve como consequências, diríamos positivas, a racionalização das tarefas e o aumento do controlo da qualidade dos produtos, o aumento da produtividade, o surgimento de um novo conceito de fábrica, espaço mais amplo capaz de permitir a linha de montagem onde se opera o trabalho em cadeia; e, ao mesmo tempo, consequências, diríamos negativas, a interdependência entre tarefas que, na circunstância de uma falhar, faziam depender toda a produção final e o facto de ter maximizado a produção humana como produção mecanizada, isto é, de ter feito dos operários "objectos" de produção capazes de repetirem incessantemente e, por suposição, sempre ao mesmo ritmo e bem, enfadonhas tarefas meramente mecanizadas.


O Fordismo na acepção regulacionista

No vigésimo aniversário da Teoria da Regulação, esta comunicação discute o valor heurístico da expressão fordismo. Foi em Paris, há exatos vinte anos, que essa idéia começou a adquirir uma aura conceitual. Até então, fordismo era uma noção usada apenas para descrever uma fase avançada da racionalização do trabalho industrial, ou, no máximo, para evocar uma etapa superior do taylorismo. Mesmo em Gramsci (1934) a ênfase estava mais no rendimento fabril do operário do que em seu modo de consumo.

A tese de Michel Aglietta, publicada em 1976, fez com que a idéia de fordismo se tornasse uma das fundações da Teoria da Regulação e contaminasse, em seguida, diversas vertentes da Economia Política Tem sido usada em tão larga escala nos debates sobre as tendências atuais do capitalismo, que até pode parecer um capricho querer discutir seu significado. Mas um exame do uso ambíguo que se faz dessa expressão pode ajudar a realçar tanto as fragilidades quanto o potencial da abordagem regulacionista.

A compreensão atual

Em recente coletânea sobre o assunto, o entendimento regulacionista do termo ‘fordismo’ é enaltecido por ser usado para sintetizar um ‘macrosistema’ de ‘acumulação intensiva’ com ‘regulação monopolista,’característico das economias centrais nas décadas de 50 e 60. Segundo Ash Amin (quem editou e introduziu essa coletânea), o forte da abordagem regulacionista não é o emprego do termo fordismo em outros níveis de análise, como, por exemplo: a) enquanto processo de trabalho característico da produção de massa em linhas de montagem (paradigma industrial); b) como círculo virtuoso de crescimento impulsionado pela transferência de parte dos ganhos de produtividade aos salários (regime de acumulação); c) enquanto padrão institucional da coesão sistêmica obtida nos ‘gloriosos’ 1948-1973 (modo de regulação); e d) o tipo de sociabilização desses mesmos anos dourados (“mode of societalization,” “Vergesellschaftungsmodi”).

Ou seja, nessa perspectiva, o fordismo não é um conceito teórico, e sim uma maneira de caracterizar o “modo de vida total” do último auge cíclico do capitalismo (Harvey,1989:131). É na descrição analítica desse auge que são usados os dois conceitos básicos (unânimes) dos regulacionistas: ‘regime de acumulação’ e ‘modo de regulação’. Dependendo do autor, essa dupla vem complementada por conceitos complementares como ‘paradigma industrial’, ‘modo de sociabilização,’ ou ‘modo de desenvolvimento’.

Não deixa de ser estranha a escolha do termo fordismo para simbolizar tanta coisa, por mais pioneira que possa ter sido a experiência empresarial de Henry Ford. O nome de Keynes, por exemplo, é tanto ou mais representativo do fenômeno que se procura realçar, como indica, aliás, a seguinte reflexão de um dos principais expoentes atuais da teoria da regulação.

“Ford e Keynes haviam percebido que a aceleração dos ganhos de produtividade provocada pela revolução taylorista levaria a uma gigantesca crise de superprodução se não encontrasse contrapartida em uma revolução paralela do lado da demanda. (...) Mas Ford e Keynes pregavam no deserto. (...) Os temores de Ford, de Keynes... e dos sindicatos diante do conservantismo liberal dos Hoover, Lloyd George ou Laval encontraram por isso, na Grande Depressão dos anos 30, naquela gigantesca crise de superprodução, uma trágica confirmação.” (Lipietz,1989:30-31)

E também não há como comparar Ford ou Keynes a fenômenos políticos como o “Welfare State” ou a Social-Democracia, quando se pretende caracterizar a coesão sistêmica do capitalismo em seus anos mais dourados. Foram estas as principais formas institucionais do compromisso que acabou permitindo a redistribuição dos ganhos de produtividade aos assalariados. A nível internacional, foram as instituições criadas nos acordos de Bretton Woods que regularam a expansão dos anos 50 e 60. De resto, os mecanismos reguladores conheceram graus diferentes de desenvolvimento, segundo os países, como enfatiza o próprio Lipietz:

Por exemplo, depois da guerra e do período Roosevelt, os Estados Unidos sofreram um nítido retrocesso, com a Guerra Fria e o macarthismo. Mesmo as reformas de Kennedy e de Johnson (que foram depois o alvo de Reagan) não chegaram a fornecer ao povo americano uma previdência social equivalente à da Europa do norte. Quanto à França, só chegou à consumação do fordismo nos acordos de Grenelle, em junho de 1968. Acordos que encerravam os "acontecimentos de maio" - que podem ser vistos como o primeiro grande movimento de massa antifordista!” (Lipietz,1989:34)

Não é evidente, portanto, porque os os regulacionistas utilizam uma metáfora tão diminuta para se referir a algo tão amplo como o “modo de vida total” da Idade de Ouro. Talvez alguma pista possa ser encontrada numa volta à origem da teoria da regulação.


A pedra angular

Em Aglietta (1976:96), o fordismo é um novo estágio da regulação do capitalismo. Nesse estágio, a classe capitalista procura gerir a reprodução da força de trabalho assalariada por uma estreita articulação entre as relações de produção e as relações mercantis pelas quais os assalariados compram seus meios de consumo. O fordismo é, então, uma articulação entre processo de produção e modo de consumo, constituindo a produção de massa, que, por sua vez, é o conteúdo da universalização do assalariamento.

O fordismo é o conjunto das condições sociais que caracterizam o regime de acumulação intensiva. (Aglietta,1976:132) Enquanto o capitalismo transforma o processo de trabalho sem remodelar o modo de consumo, o regime de acumulação é extensivo. O novo estágio do capitalismo é atingido quando a acumulação não apenas transforma o processo de trabalho, mas, sobretudo, transforma o processo de reprodução da força de trabalho. (Aglietta,1976:60)

O critério de periodização dos estágios históricos do capitalismo baseia-se no conteúdo da mais-valia relativa. No primeiro estágio há transformação do processo de trabalho sem mudança profunda das condições de existência dos assalariados. No segundo, há rápida e concomitante mudança do processo de trabalho e das condições de existência dos assalariados. (Aglietta,1976:18)

Ou seja, para o fundador da Teoria da Regulação, enquanto predominava a mais-valia absoluta, o regime de acumulação era extensivo. Quando essa acumulação passou a se dar essencialmente pela redução do valor da força de trabalho - isto é, pela redução do tempo de trabalho socialmente necessário - tanto a produção quanto o consumo foram massificados e o regime tornou-se intensivo. É o conjunto das condições sociais desse estágio da regulação do capitalismo que ele inseriu no conceito de fordismo.

Diversas críticas a esse esquema analítico de Aglietta foram publicadas nos últimos cinco anos .Uma delas refere-se à real prevalência, nos Estados Unidos, até a terceira década do século XX, de um regime de acumulação extensivo. Segundo Page e Walker (1995:9), o fenômeno que os regulacionistas entendem por acumulação intensiva é muito mais antigo do que a experiência de Henry Ford. Data, segundo eles, da fase que se seguiu à Guerra Civil.

Uma segunda crítica refere-se diretamente à caracterização do regime de acumulação posterior ao início do século XX (intensivo) por meio da parábola do “fordismo.” Trata-se, segundo Page e Walker, de uma visão muito inadequada do processo de mudança técnica e organizacional na indústria.

E a principal investida realmente teórica de Page e Walker contra o regulacionismo aparece na terceira crítica, quando opõem uma ênfase na “mudança técnica” à ênfase regulacionista nas “instituições.”

Ou seja, Page & Walker apontam diversas incongruências na utilização da história dos Estados Unidos para construir os conceitos de regimes de acumulação “extensivo” e “intensivo”, destacando a precariedade da noção de ‘fordismo’ e enfatizando a inadequação dessa teoria para uma interpretação do desenvolvimento econômico daquele país. Mas estas críticas não atingem o cerne da abordagem regulacionista. Quando finalmente abordam os conceitos básicos dos regulacionistas - “regime de acumulação” e “modo de regulação” - não vão muito além de uma preferência pela “mudança técnica” em vez das “instituições.” E confirmam de duas maneiras um certo desdém pela dimensão macroeconômica. Primeiro, ao afirmarem que a preocupação com a compatibilização da produção e do consumo é apenas “neoclássica” ou “keynesiana.” Segundo, ao minimizarem a relevância dos “modos de regulação.” Estas duas características das críticas de Page & Walker estão ainda mais claras nos textos de Walker (1995) e Sayer & Walker (1995). E no capítulo 5 do livro The New Social Economy (Sayer & Walker,1992), entitulado “Beyond Fordism and Flexibility,” a completa separação entre “a produção” e “o resto” fica bem explícita.

É perfeitamente aceitável que se faça esse “corte” entre ‘a produção’ e ‘o resto’ para aprofundar a análise. Mas não se pode tomar essas críticas à noção de fordismo como se fossem uma crítica muito rigorosa à Teoria da Regulação. Principalmente porque a noção de fordismo é menos importante que os conceitos básicos. Particularmente o de “modo de regulação”, que, afinal, não chega a interessar esses críticos.

Alternativas

Se a idéia de ‘fordismo’ não é boa para caracterizar o regime de acumulação da fase mais recente do capitalismo (intensiva), e, muito menos, os trinta anos de gloriosa acumulação do capitalismo americano, torna-se necessário, então, reexaminar a natureza do regime de acumulação que predominou na segunda metade deste século, bem como do modo de regulação vigente na “idade de ouro.” Só assim será possível discutir (mais para frente) se as mudanças ocorridas nos últimos 20-25 anos de marasmo econômico permitem identificar a emergência de um novo modo de regulação (ou até, quem sabe, uma transição a um novo regime de acumulação).

É comum afrimar-se que a longa onda de prosperidade do pós-guerra foi seguida, a partir dos anos 1970, por um período de ‘crise.’ Entre inúmeros exemplos, pode-se considerar as análises de pós-marxistas que não usam a terminologia dos regulacionistas, mas chegam a conclusões bem similares (ou convergentes). Por exemplo, a abordagem norte-americana das ‘estruturas sociais da acumulação’ (“SSA approach”; Weisscopf ,1991) que foi, aliás, incluída na ampla revisão dos regulacionistas feita por Jessop (1990).

O que Weisscopf chama de “estrutura institucional do modo de produção capitalista” é exatamente o que um regulacionista chamaria de “modo de regulação.” Para ele, a melhor maneira de caracterizar a estrutura institucional da ‘idade de ouro’ é descrevê-la como “welfare state capitalism.” E as mudanças nesse sistema institucional - do “welfare state capitalism” - teriam sido tão significativas que já seria possível afirmar que foi substituído por outro, chamado por Weisscopf de “global market capitalism.”

Esse contraste “welfare state/global market” para caracterizar o que o autor considera a “estrutura institucional” do capitalismo talvez se revele tão precária quanto a oposição “fordismo/pós-fordismo.” Mas já traz uma grande vantagem, simplesmente por deslocar a ênfase para o domínio da relação ‘Estado / mercado,’ em vez da relação ‘indústria / mercado.’ O mesmo contraste também pode ser identificado no universo regulacionista. Apesar de sua diversidade, um dos principais aspectos constantes nas abordagens regulacionistas destacados na revisão feita por Jessop (1990) foi justamente a preocupação com as formas e mecanismos que asseguram a reprodução ampliada do capital enquanto relação social. E, cinco anos depois dessa revisão, o mesmo autor procurou apontar as relações entre a teoria da regulação e a abordagem “governacionista,” isto é, a confluência entre elaborações econômicas do ‘novo institucionalismo’ e elaborações políticas ‘neo-corporatistas.’

Mas a tendência em determinar a natureza de um modo de regulação mais por sua dimensão política do que por sua base industrial (como ocorre com a noção de ‘fordismo’), também pode ser encontrada em outras análises. Tanto é que Bruno Théret (1994) chega a rebatizar o modo de regulação da ‘idade de ouro,’ integrando suas três principais dimensões [welfare state - keynesianismo-democracia pluralista] no qualificativo “solidarista.”

Sejam quais forem as denominações, ênfases, ou destaques, uma coisa é certa: muitas destas abordagens têm em comum a idéia básica de que o modo de regulação dos trinta gloriosos anos de prosperidade do capitalismo ocidental entrou em evidente processo de reciclagem a partir dos anos 1970. O que varia é a importância relativa atribuída às dimensões mais econômicas (consumo de massa, paradigma tecnológico) ou às dimensões mais políticas (democracia, ‘welfare state’).

Enfim, é errado identificar a teoria da regulação com as idéias muito em voga sobre o fordismo, sua crise e a chamada transição ao pós-fordismo. Jessop (1990) bem observou que nem todo estudo do fordismo é regulacionista e nem toda abordagem regulacionista se preocupa com o fordismo. As duas principais conclusões deste ensaio vão um pouco mais longe: (a) é preciso abandonar a idéia de fordismo para caracterizar o ‘modo de vida total’ da Idade de Ouro; (b) ainda está por ser feita uma boa caracterização do regime de acumulação e dos modos de regulação que prevaleceram na segunda metade do século 20 nas principais economias centrais.



Aluna: Bruna Fátima Wiest P.

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